domingo, 27 de julho de 2008

BIG BANG RECRIADO: ALARDE FALSO


O texto a seguir, de autoria de Mario Novello, doutor em física que coordena o Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (Icra), foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo de 19 de julho. Segundo ele, “não é verdade que recriaremos em laboratório as condições iniciais do Universo”. O texto é um pouco longo, mas vale a pena ler para perceber o verdadeiro interesse por trás da supervalorização das experiências que serão realizadas no Large Hadron Collider e do sensacionalismo motivado pela mídia.


Boa leitura:


Nestes trinta e poucos anos de minha carreira científica, raramente tenho tomado a iniciativa de escrever para um jornal, embora tenha dado em várias ocasiões entrevistas sobre alguns aspectos de minha atividade principal, a cosmologia. Se faço hoje uma dessas raras exceções é porque estou convencido de que existe um certo mal-estar na ciência que precisa ser explicitado. Minha motivação se origina a partir de comentários surgidos na imprensa de vários países, incluindo o Brasil, de que experiências que vão acontecer em breve no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) “recriarão as condições do começo do Universo”. Não vou aqui encerrar uma discussão, mas, ao contrário, abri-la.



A questão se inicia ao percebermos que um importante princípio de equilíbrio da posição do cientista na sociedade contemporânea está sendo perigosamente perturbado. Esse princípio é responsável pela respeitabilidade de que a ciência hoje desfruta. De um modo direto, ele pode ser entendido a partir da seguinte regra prática: enquanto os cientistas não têm argumentos teóricos e observacionais definitivos sobre um assunto, sua explicação para os não-cientistas deve exibir as alternativas possíveis. Isto é, só se pode passar verdades científicas (que são mutáveis, claro está, mas durante um certo tempo são “verdades eternas”) para o grande público se os cientistas estiverem de posse de argumentos que naquele momento sejam definitivos e permitam sustentar a veracidade de sua afirmação.



Quando um leigo assiste a uma palestra de divulgação científica ou quando lê as novidades científicas em um jornal ou revista ele assume implicitamente que está exposto a uma descrição fidedigna do que a ciência está produzindo e das verdades que ela sustenta. Dessa forma, um cuidado muito especial deve estar sempre presente para que a esse cidadão não seja dada informação científica sem que ela esteja correta integralmente. Mas nem sempre isso tem ocorrido no Brasil e também nos grandes centros internacionais.



Vou deter-me em um só tema exemplar, particularmente relevante devido à importância que possui no imaginário de todos nós, cientistas ou não. Trata-se das origens do Universo. De forma simples, a história global do Universo pode ser resumida por meio da idéia, explicitada por Alexander Friedman em 1917, de que seu volume total varia com o tempo cósmico. Em 1929, Edwin Hubble observou que esse volume aumenta. De imediato, a questão se coloca: quão pequeno foi esse volume no passado?



VALOR INFINITO



Durante três décadas, duas propostas rivalizaram sem que se pudesse decidir entre elas. Uma, a do big bang, argumentava que esse volume foi nulo e, conseqüentemente, o Universo tem uma data de nascimento, que hoje valeria alguns poucos bilhões de anos. A totalidade da matéria existente no Universo teria sido criada em um só momento e haveria uma dinâmica que faria com que o Universo não tivesse as mesmas propriedades com o passar dos tempos. A outra proposta, dita do universo estacionário, dizia que o Universo não teve um instante único de criação, mas a matéria estaria sendo criada continuamente e a configuração espaço-temporal do Universo não muda. Algumas descobertas importantes da década de 1960 mostraram que, desses dois cenários cosmológicos, o big bang está mais em acordo com os dados observacionais.



Nesse ponto, uma curiosa situação ocorre. A observação de que o Universo é uma estrutura dinâmica mostra que Friedman estava certo quando argumentou que o volume total do Universo varia com o tempo. Esse modelo, porém, deixa lugar para várias dúvidas. Dentre essas, a que nos interessa: não se sabe até quando, no passado, esse modelo pode ser extrapolado. No entendimento original de Friedman, o menor volume teria sido zero. Se isso realmente ocorresse, acarretaria uma série de dificuldades formais das quais a mais crucial seria a de que qualquer cosmologia presente e futura deveria abdicar de produzir uma descrição racional completa do Universo. Isso porque todas as quantidades físicas, como a densidade de energia e a temperatura, assumiriam ali, naquele ponto singular, o impossível - posto que inobservável - valor infinito. Devido a essa dificuldade, ao longo dos anos vários cientistas se dedicaram a examinar cenários cosmológicos nos quais aquela singularidade inicial pudesse ser evitada. O Universo teria passado por um volume mínimo que marcaria a transição de uma fase anterior colapsante para a fase atual de expansão, na qual o volume aumenta com o passar do tempo. Aquele momento de condensação máxima, que separa as duas fases (contração e expansão), chama-se bouncing. A distinção entre os dois modelos (big bang e universo-eterno-com-bouncing) se faz sentir de modo crucial na velocidade de expansão de seu volume naquele ponto de condensação máxima: no big bang, ela é infinita; no cenário do universo-eterno, zero. Embora ao longo das duas últimas décadas do século passado a idéia de um universo dinâmico não singular contendo um bouncing tenha sido deixada de lado, no século 21 ela tem aparecido com grande força.



As principais revistas científicas americanas em que se publicam os resultados das investigações de vanguarda - que constituem na prática grandes formadoras de consenso entre os cientistas de todo o mundo - foram responsáveis por disseminar, ao longo de décadas, o cenário big bang (e pôr no limbo os cenários alternativos que não têm singularidade inicial, isto é, sem um começo a um tempo finito). Essa atitude mudou radicalmente nos últimos anos. Uma das revistas mais respeitadas pela comunidade científica internacional, Physics Report, solicitou-me que escrevesse um artigo contendo os principais cenários cosmológicos sem singularidades que os cientistas têm examinado. Esse artigo, que escrevi com meu colaborador Santiago Bergliaffa, foi publicado recentemente. Se faço esse comentário é somente com uma finalidade: a de mostrar contundentemente que até mesmo nos Estados Unidos, cuja sociedade científica dita a norma do pensamento convencional contemporâneo, o stablishment admite a possibilidade de uma alternativa ao big bang.



PARCEIROS DE DEUS



Embora as experiências no Cern possam reproduzir condições de energia que existiram livremente no Universo quando ele estava altamente condensado, elas não reproduzirão as condições do big bang, se com esse termo se está identificando o suposto momento único de criação do Universo. Tecnicamente, isso é impossível, já que na versão big bang para o começo do Universo as quantidades físicas seriam infinitas, um valor que não poderemos jamais atingir. Se me estendo nessa questão é porque, aproveitando a entrada em operação neste ano da maravilhosa máquina Large Hadron Collider (LHC) que o Cern construiu para entender como funciona o microcosmo - aquilo que simplificadamente chamamos de física das partículas elementares -, jornais de vários países, inclusive do Brasil, alardearam que os cientistas estariam no limiar de reproduzir em laboratório as condições iniciais do Universo. Convertendo-se, no dizer ingênuo de alguns, em parceiros ou concorrentes de Deus. No primeiro momento, considerei que essa afirmação fantasiosa se limitava a uns poucos jornalistas ansiosos por matéria sensacionalista. Entretanto, aos poucos fui detectando que essa desinformação estava sendo passada com grande freqüência para a sociedade e, muito em breve, ela poderia ser levada a sério pelo leigo.



Esse leitor leigo pode estar espantado ao perceber que um laboratório que se dedica a experimentar o microcosmo esteja ao mesmo tempo lidando com estruturas grandiosas, envolvendo a totalidade do que existe, o Universo. Essa relação não é difícil de ser entendida. E, como tudo, tem um aspecto político, além do técnico-científico. Explico-me. Nos anos 1970 houve uma crise na física de partículas elementares: para comprovar algumas idéias em voga e decidir sobre teorias rivais, fazia-se necessária a observação de processos extremamente energéticos. Esses processos envolviam energias que só poderiam ser criadas em laboratório com a construção de máquinas capazes de produzir feixes de partículas a altíssimas velocidades. Mas havia um problema a ser contornado: as máquinas eram muito custosas. Os dois maiores centros de investigação da época - o Cern, em Genebra, e o FermiLab, em Chicago - estavam disputando a liderança mundial com a União Soviética. Quando começou a ficar clara a debacle da URSS e o conseqüente desmonte de sua ciência (bem antes da queda do muro de Berlim), primeiro os EUA e depois a Europa rejeitaram a criação daquelas máquinas. Uma crise se instalou então entre aqueles que pesquisavam as partículas elementares, que constituíam um grande contingente de cientistas. Isso fez com que essa comunidade de físicos voltasse sua atenção para a cosmologia.



BASTA OLHAR O CÉU



O cenário cosmológico evolutivo imaginado por Friedman foi então o território escolhido para substituir, no imaginário dos físicos, a ausência de máquinas de acelerar partículas. O principal motivo científico para realizar essa substituição estava associado ao sucesso da cosmologia. Com efeito, o modelo-padrão do Universo se baseia na existência de uma configuração que descreve seu conteúdo material como sendo constituído por um fluido perfeito em equilíbrio termodinâmico, cuja temperatura varia com o inverso do fator de escala que mede sua expansão; isto é, quanto menor o volume espacial total do Universo, maior sua temperatura. Assim, nos primórdios da atual fase de expansão, o Universo teria passado por temperaturas extremamente elevadas. Isso implica excitação das partículas, expondo o comportamento da matéria em situações de altíssimas energias. E, o que era mais conveniente, a um custo muito menor, quase de graça: bastaria olhar os céus.



Saltando daquela época para os dias atuais, a grande máquina LHC que o Cern finalmente decidiu construir vai gerar energias bastante elevadas, só atingidas pelo Universo no passado remoto, quando o volume total do Universo era bastante diminuto. Em suma, estaremos reproduzindo no LHC condições de energia semelhantes às que o nosso cosmos passou. Isso não significa que vamos reproduzir em laboratório as condições atribuídas ao big bang, e menos ainda recriar o estado do Universo “em seu momento de criação”. Não há nenhuma argumentação cientifica sólida - a não ser uma extrapolação enquanto proposta de descrição do Universo - capaz de identificar a existência de uma fase extremamente quente e condensada do Universo com “seu começo”. Os cientistas não são deuses. No máximo, sacerdotes, alguns ansiosos demais por erigir um dogma e exibir-se como profeta de um mito científico de criação. [Esta foi muito boa!]



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